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Caso Americanas. Não foi fraude contábil. Então, o que foi?

J. Miguel Silva (*)

Dedico-me a analisar brevemente, observado o pouco espaço reservado para tema tão controvertido e difuso, sobre o uso generalizado e contínuo pelos stakeholders da locução e pecha “fraude contábil” para expressar o suposto caso ocorrido na companhia “Lojas Americanas”.

É notório o alvoroço que desperta o caso em tela, devido à magnitude do rombo financeiro e aos vários interessados na questão.

Nesta oportunidade, dedico-me a analisar brevemente, observado o pouco espaço reservado para tema tão controvertido e difuso,  sobre o uso generalizado e contínuo pelos stakeholders  da locução e pecha “fraude contábil” para expressar o suposto caso ocorrido na companhia “Lojas Americanas”, locução também usada nos casos “IRB Brasil” em 2020 e no perenal caso estadunidense “ENRON” em 2001, o qual, na época,  foi objeto de estudo de caso solicitado aos alunos, quando ministrei aula de pós-graduação na FUNDACE, no campus da USP/Ribeirão Preto.

Como militante no direito empresarial há vários anos, convivo com situações similares a estas, e digo isto, pois sei a grande tensão e a angústia geradas nas pessoas efetivamente envolvidas em um caso desta natureza, e pior, as injustiças sociais que se praticam com pessoas dotadas não poucas vezes de boa-fé, condenadas publicamente por precipitação, na era do TikTok.

Assim, este conciso diagnóstico visa contribuir singelamente em dar luz ao tema, evitar sentenças sociais inoportunas e a difusão de terminologia adequada para situações similares, para tanto, devemos evitar o círculo vicioso do pensamento, ou seja, parafraseando Einstein, não podemos resolver problema complexo usando o mesmo tipo de reflexão e de expressão que se usa quando ele foi criado em momentos tormentosos.

Respiremos!

À guisa de introdução, sabemos que não há crime sem lei que o defina e não há pena sem prévia cominação legal (Código Penal – CP, art. 1º). Aqui, merece já um alerta, não há lei penal, nem mesmo civil, que defina e tipifique “fraude contábil”, jargão criado no mundo dos negócios e encampado pela mídia e redes sociais.

O que temos, no campo penal, é o gênero “crime de fraude” e várias de suas espécies, como por exemplos, o estelionato e a fraude eletrônica (CP – art. 171), já na esfera civil, há a descrição genérica dos atos ilícitos (arts. 186 a 188 do Código Civil).  Por conseguinte, adjetivar (qualificar) o substantivo “fraude” com a palavra “contábil” serve apenas como um instrumento de simplificação que visa expressar o núcleo de um fato estritamente de cunho contábil dotado de ilicitude.

Não cabe oposição a simplificação, muito mais hodiernamente, pelas virtudes de percepção célere desta ferramenta linguística, desde que o núcleo do fato esteja bem representado por ele, ou seja, não pode estar eivado do sutil “simplismo reducionista”, que é diferente de “simplificação”.

Não esqueçamos: “simplificação” visa apenas explicar muito, com muito pouco, sem viés. Já o “simplismo reducionista” é nocivo, pois carrega consigo o vício de raciocínio com desprezo de elementos essenciais e inafastáveis para compreensão do tema trazido à baila para debate ou embate. Simplismo reducionista “é meter o pé na porta antes de procurar a chave”, como relatou com lucidez o escritor Paulo José Cunha (site Congresso em Foco, 01.04.2019, visto em 27.01.2023).

Aos meus olhos, aqui reside o equívoco técnico! A locução “fraude contábil” traz em seu ventre o deletério princípio do simplismo reducionista, não revelando adequadamente o ocorrido no caso ENRON, IRB Brasil, e no suposto case “Americanas”, cabendo o uso de outra expressão técnica, apresentada a seguir com os seus fundamentos, dotada da louvável e eficaz simplificação para exprimir tema excessivamente técnico, complexo e impactante, requerendo-se maior refino em retratá-lo.

Vamos lá! Qual é a situação fática com a qual nos deparamos hoje?

– Mais uma vez a pecha “fraude contábil” se vincula aos possíveis critérios contábeis que foram inobservados quando do levantamento das demonstrações contábeis de uma companhia (Lojas Americanas), no caso, diz respeito à apresentação de Operação de Forfait (Risco Sacado), algo que será investigado e revelado com todas as suas nuances, no futuro, nos foros competentes.

A Operação Forfait, enquadra-se no âmbito contratual,  como  uma operação financeira triangular (fornecedor-banco-cliente), um fornecimento financiado (versão avançada da modalidade “desconto de duplicatas”), na medida que o fornecedor recebe o valor acordado de forma antecipada ao prazo anteriormente estipulado junto ao cliente, transferindo ao banco, o controle, os benefícios e  riscos inerentes  ao  recebimento perante ao mesmo cliente (adquirente das mercadorias ou serviços), abrindo-se a oportunidade de aumentar os prazos de pagamento para o adquirente, segundo a sua “força cadastral” (a Americanas era forte até então)  e necessidade de equalização de fluxo de caixa, com taxas de juros menores, como regra,  às praticadas no financiamento de capital de giro. 

No âmbito normativo contábil, temos originalmente um passivo operacional (conta fornecedores) para quem adquire, e conforme os termos contratados com o banco e o elastecimento da operação financeira, cada caso é um caso, poderá ser necessário desconstituir à frente esse passivo operacional e reconhecer e apresentar em seu lugar um passivo financeiro, a título de dívida bancária, somando-se os seus encargos a apropriar, algo que ocorrerá  pro-rata temporis para despesa financeira, diminuindo o resultado do exercício, não cabendo invencionice contábil estapafúrdia, na hipótese em que os juros incorridos reduziriam a própria dívida bancária no passivo, sem transitar o encargo pelo resultado, visando apresentá-lo positivamente aos usuários, ludibriando-os, permitindo até  bonificar diretores, segundo regras de meritocracia, e distribuir aos acionistas lucro inexistente (como o site da Revista Exame relata em matéria de 13.01.2023, vista em 27.01.2023).  

O problema não está nas normas contábeis que regem diligentemente a elaboração das demonstrações contábeis, mas sim nos agentes que fazem mal uso delas, como de quaisquer outras normas de conduta.

Pois bem! Para o correto enquadramento técnico e legal da suposta fraude, definamos, em separado, o que é fraude. Note-se que fraude é um crime, um ato ilícito regulado pelo direito penal, derivado do latim fraus, fraudis (engano, má-fé ou iludir). Consubstancia-se na ação astuciosa em prol de se ocultar a verdade ou mesmo quando o agente foge do cumprimento do seu dever legal, prejudicando terceiros.

Consagrado está que o destinatário da norma penal é todo aquele que realiza a ação proibida ou omite a ação determinada, desde que, em face das circunstâncias, lhe incumba o dever de praticar o ato ou abster-se de fazê-lo.

Como vimos supra, tratando-se de matéria penal, requer-se a imprescindível observância da tipificação da conduta, quer dizer, descrever com precisão o ato delinquente com o devido enquadramento legal, para atribuição da respectiva pena. Afora isso, a punição é aplicada segundo o princípio constitucional da individualização da pena (CF/88, art. 5º, XVVI), distribuindo ao agente da ilicitude ou a cada agente o que lhe cabe (dosimetria da pena, segundo a culpabilidade individual,  CP – arts. 29 e 59).

No estágio em que nos encontramos, é patente não caber adjetivar como contábil um crime de fraude, matéria de direito penal, sem amparo fático, científico e legal. Merece ressaltar que no Brasil, e é consenso na doutrina e na  jurisprudência, adotamos a teoria monista, nos termos do art. 29 do Código Penal, quer dizer, em crime de fraude com concurso de pessoas, como foram os casos ENRON, IRB Brasil, e o caso trazido à baila assim também  sinaliza, sujeito a confirmação na investigação aplicável,  a unicidade de crime de fraude não impõe a unicidade de penas, eis que a norma é clara ao determinar que todos responderão pelo mesmo crime, mas na medida de sua culpabilidade, ou seja, a pena deve ser individualizada, em decorrência, requer-se com exatidão identificar qual  foi o crime e o autor (agente principal), o coautor (agente principal), e,  em grau menor, o partícipe (agente acessório) moral ou material.

Assim, concluindo-se em levar o caso para o campo penal, poderá ficar só no campo civil, a denúncia deve ser acompanhada com o mínimo embasamento probatório, contendo a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, apto a demonstrar a efetiva realização do ilícito penal por parte do denunciado ou de cada denunciado.

Ressalta-se que uma fraude pode vir a ser reparada apenas no campo civil (patrimonial), pois o princípio penal da subsidiariedade impõe que a dura e gravosa intervenção penal somente é admissível quando os demais ramos do direito não conseguem bem equacionar os conflitos sociais (STJ: HC 197.601/RJ, j. 28.06.2011).

Do exposto, para compreensão da questão, entendo ser de bom teor técnico distinguir, por sentir falta desta contraposição dotada de tenuidades imperativas: (i) erro contábil, (ii) fraude contábil e (iii) fraude de gestão. Conceituo e fundamento:

(i) Erro contábil: Trata-se de erro relevante ou irrelevante identificado numa política contábil da empresa, rechaçado por norma técnico-contábil aplicável, pautando-se em especial pela regulação do Conselho Federal de Contabilidade –  NBC TG 23 – Políticas Contábeis, Mudança de Estimativa e Retificação de Erro, falha essa praticada exclusivamente pelo Contador, revelada publicamente pelas peças contábeis cabíveis, logo que identificada por ele ou por auditoria independente, se houver, em conjunto com o Diretor (representante legal) da sociedade empresária que subscreveu as demonstrações contábeis anteriormente divulgadas aos usuários.

Nesta hipótese, descaracteriza-se, no âmbito penal, o crime de fraude, e inaplicável, a responsabilização civil (reparação patrimonial pessoal) do contador perante terceiros. Entretanto, poderá o preponente (a sociedade empresária, representada pelo seu diretor) requerer reparação patrimonial junto ao preposto (contador), pelo seu ato culposo e negligente (não doloso) diante de um dano econômico relevante comprovado, segundo o art. 927 do Código Civil.

(ii) Fraude Contábil:  É pertinente e adequado referir-se a erro relevante praticado exclusivamente pelo Contador da empresa, de forma premeditada e ardilosa, assim, não revelado aos terceiros interessados, em lesão patrimonial a estes, e em benefício daquele, sem conhecimento e constatada a ausência de orientação malevolente advinda da Diretoria da sociedade empresária. 

Portanto, estamos diante de um ato particular doloso (intencional), ou seja, crime de fraude em particular (crime monossubjetivo), sem concurso de pessoas (crime plurissubjetivo), com o propósito de enganar usuários das demonstrações contábeis, em benefício de qualquer espécie, econômico ou não, do preposto (Contador). Neste caso, caberá pessoalmente ao preposto, solidariamente com o preponente (a sociedade empresária, representada pelo seu diretor), reparar patrimonialmente os terceiros lesados (usuários das demonstrações contábeis) que comprovarem o seu dano, conforme expressamente estipula o parágrafo único do art. 1.177 do Código Civil.

Caberá o direito de regresso do preponente junto ao preposto.

No campo penal, em restando provada a intensão de cunho personalístico do Contador em lesar terceiros, ele, individualmente, responderá pelo crime de fraude, cabendo a investigação própria enquadrar citado crime de fraude na codificação penal, pois crime não há quando não tipificado na normatização penal, ou seja, é inafastável descrever com precisão a conduta delinquente e atribuir a respectiva pena, como por exemplo, estelionato (CP – art. 171), o qual representa modalidade de crime patrimonial de obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento, outro exemplo, temos o crime contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90 -arts. 1º e 2º).

(iii) Fraude de Gestão: Revela-se no erro previamente arquitetado e executado pela alta cúpula da corporação, quer dizer, planejado e executado pelo Diretor ou Diretores da sociedade empresária, vestidos de ladinos, desse modo, erro não declarado aos terceiros interessados, com intenção de prejudicá-los patrimonialmente, em especial proveito aos integrantes do corpo diretivo, podendo inclusive envolver a escrituração e as demonstrações contábeis, contando com a participação do profissional da contabilidade e de outros agentes, ou não, inclusive auditores ou membros do conselho de administração, se houver.

Estamos diante de um crime em coletivo (plurissubjetivo), diferentemente do crime em particular da fraude contábil (monossubjetivo). Neste caso, os terceiros prejudicados poderão requerer reparação patrimonial com a aplicação do art. 1.177 do Código Civil, invocando inclusive a solidariedade do preponente e do preposto (contador, que assinou o balanço).

Cabe aqui separar o joio (delinquente) do trigo (inocente), se houver, e mais, precisamos separar o joio principal do joio acessório, quer dizer, identificar o autor, coautor e o partícipe moral ou material, com as devidas graduações de penas, neste crime com concurso de pessoas, de que trata o art. 29 do CP.

Os stakeholders, incluindo mídia especializada, ao fazerem referência ao caso “Americanas”, da mesma forma feita nos casos ENRON e IRB Brasil, como sendo uma “fraude contábil”, produzem suas mazelas, lamentavelmente expondo em demasia alguns profissionais e suavizando para outros integrantes da corporação, abrindo-se espaço até para o absurdo de se questionar a qualidade e eficácia das  normas contábeis internacionais (IFRS) recepcionadas pela Nova Lei das S/A (Lei 11.638/07), desprezando-se o avanço alcançado em favor dos usuários das demonstrações contábeis com a nossa convergência legal para a IFRS, afora sugerir implicitamente para os leigos na sociedade, que devem ser invocados como os maiores responsáveis pelas supostas inconsistências no balanço os profissionais da contabilidade, entenda aqui contadores e auditores, não dando a devida atenção especial  aos mentores (autores) do escárnio, que propalam por vezes, na condição de CEOs de companhia aberta, que ela se enquadra nos princípios ESG, portanto, com responsabilidade social e governança (compliance), lesando acionistas minoritários, fornecedores, financiadores e clientes.

Dai a César o que é de César, com justiça social, nem mais, nem menos, a cada um, segundo o seu grau de culpabilidade no caso, seja qual for o cargo ou função exercida perante a corporação abatida.

Por todo o exposto, merece reconsideração e reparo o simplismo reducionista praticado até então, e passar-se a denominar casos tidos como similares ao ENRON e ao IRB Brasil em novo patamar, subindo o elevador, não mais como fraude contábil, mas como fraude de gestão, revelando-se assim o real núcleo do fato.

É isto.

J. Miguel Silva é Advogado e Contador. Autor de obras que versam sobre legislação e direito empresarial.

Foi professor convidado em universidades, na FUNDACE/USP (Ribeirão Preto/SP) e FECAP/SP.

Ministra seminários e palestras em todo o Brasil desde 1988 sobre legislação e direito empresarial.

Em 2006, eleito “Homem do Ano”, na área jurídica, título esse recebido na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

“Contabilista Emérito” pelo Sindicato dos Contabilistas de São Paulo.

Ocupa Cadeira da Academia Paulista de Contabilidade.

Sócio-Diretor da Miguel Silva & Yamashita Advogados.

Sócio-Diretor da SABERPLAY Treinamento Profissional.

FONTE: MIGALHAS.COM.BR

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