Por: Victor Constante (*)
Determinado julgado ganha grande relevância jurídica ao passo que se mostra como o principal caso a poder levar o tema aqui enfrentado, de forma direta, ao crivo do Supremo Tribunal Federal, diferentemente do que ocorreu no Tema 796.
O planejamento patrimonial sucessório, desenvolvido e aplicado por diversas famílias e empresários, se constitui na alocação inteligente de bens, observando, principalmente: (i) proteção de patrimônio; (ii) redução tributária; e/ou (iii) organização e sucessão patrimonial.
Para a execução de um planejamento patrimonial harmônico, os profissionais da área se utilizam de diversos instrumentos jurídicos e econômicos, ventilando desde a aplicação de um simples testamento, doação direta de bens até a estruturação de fundos de investimentos privados, estruturas off-Shore e Holding (sociedade patrimonial).
Feita essa singela explanação inicial, é função deste artigo dispor sobre o instrumento de Holding como mecanismo de planejamento patrimonial e sucessório, destacando os custos envolvidos, cuidados a serem tomados e entendimentos recentes sobre o tema.
A Holding se desenvolve, de forma extremamente sintética, na seguinte sistemática:
– (a) constituição de uma sociedade empresária, na maioria das vezes uma sociedade do tipo limitada, tendo como sócios os membros de um núcleo familiar (e agregados, se for pertinente);
– (b) incorporação de bens, móveis e/ou imóveis, tangíveis e/ou intangíveis, ao patrimônio da Holding;
– (c) estabelecimento de uma governança societária, visando assegurar o controle patrimonial e político a um determinado sócio, conforme o caso em concreto demandar; e
– (d) transmissão, ao longo do tempo ou de forma imediata, das participações dos sócios a outros (normalmente dos ascendentes para os descendentes/herdeiros legais), de modo a se transmitir também, virtualmente, o patrimônio contido na Holding.
Posto isso, no desenvolver do planejamento (itens “b” e “d”), tem-se a incidência latente de dois tributos, sendo eles: Imposto sobre transmissão de bens imóveis (ITBI – Imposto Municipal) e Imposto sobre transmissão causa mortis e doação (ITCD – Imposto Estadual).
O ITBI, de modo genérico, incide quando determinada pessoa transmite “onerosamente” um bem imóvel ao patrimônio de outra pessoa. No caso da Holding, ocorre quando uma pessoa transmite um bem imóvel para o patrimônio da Holding – integralização de capital.
Já o ITCD (ITCMD), incide quando uma pessoa transmite um bem, seja ele móvel ou imóvel, por doação ou causa mortis, a outra pessoa. No cenário de Holding, o ITCD ocorre no momento em que um dos sócios doa suas quotas ou parte delas a outro.
Feita esse nivelamento teórico, cabe adentrar no assunto central deste artigo: o ITBI e sua (não) incidência.
Segundo a Constituição Federal, em seu Inciso I, §2, do artigo 156, o ITBI não deveria incidir na transferência de bem imóvel ao patrimônio de uma pessoa jurídica. In verbis:
Art. 156. §2
I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;
No entanto, o que acontece, na prática, são as municipalidades cobrando este imposto de maneira desregulada e impositiva, mesmo com expressa vedação constitucional.
O argumento utilizado pelos municípios, quando essa cobrança não é lançada por mera liberalidade, é o de que a pessoa jurídica a quem se está transferindo determinado bem imóvel tem atividade preponderantemente imobiliária, pelo simples fato de constar o objeto/CNAE imobiliário, utilizando-se da parte final do Inciso supramencionado.
Além disso, após julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal, o qual, observando um caso sui generis de alocação de bens em reserva de capital, destacou o entendimento de que:
“A imunidade em relacão ao ITBI, prevista no inciso I do § 2o do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”
As municipalidades aproveitaram para, em ocasião de não cobrarem o ITBI integral sobre o valor do imóvel a ser transferido, cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor declarado do imóvel integralizado (normalmente ao valor histórico) e seu valor venal.
Diante disso, é de fácil percepção a ignorância da disposição constitucional por parte dos entes arrecadadores, a qual estabelece uma barreira, mesmo que não totalitária, ao desenvolvimento do planejamento patrimonial por meio do instrumento de Holding, visto o aumento da carga tributária com a incidência do ITBI.
Em contrapartida a essa postura adotada pelas municipalidades, os contribuintes, orientados e representados por profissionais especializados, começaram a debater, tanto em sede administrativa, quanto em sede judicial, que determinada cobrança seria inconstitucional, sob o argumento de que:
(i) a tese fixado no Tema 796 não se aplica aos casos “comuns” de integralização de imóvel em pessoa jurídica (Holding), uma vez que o caso que ensejou o Tema tratava de destinação de sobrevalor para reserva de capital;
(ii) a atividade imobiliária, conforme oração final do Inciso I, §2º, do artigo 156, da CF, não estaria configurada automaticamente pelo objeto/CNAE da sociedade, devendo-se apurar a preponderância conforme o artigo 37, do Código Tributário Nacional; e
(iii) a incidência do ITBI só deveria ocorrer nos casos de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, ainda somente se a atividade preponderante for a imobiliária, restando todos os demais casos de integralização de capital com imóveis, imunes, segundo a estrutura gramatical/semântica do Inciso em debate.
Posto isso, discutiremos aqui o raciocínio disposto no item “(iii)”, qual seja: a imunidade irrestrita do ITBI nos casos de integralização de imóveis em pessoa jurídica.
Assim, ressalta-se que o argumento de que o Inciso I, §2º, do artigo 156 (CF) estaria subdivido em duas partes sempre teve respaldo doutrinário, conforme se denota dos estudos do ilustre Eduardo De Moraes Sabbag, em seu livro “Elementos do Direito Tributário”, o qual desenha que
– (1) O ITBI somente incidiria nos casos em que houvesse a transmissão de bens decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, caso essas operações tivesse como atividade preponderante a imobiliária; e
– (ii) O ITBI jamais incidiria quando uma pessoa integralizasse um bem imóvel ao capital social de uma pessoa jurídica.
Pois bem, além do posicionamento doutrinário, a imunidade do ITBI encontra amparo pelo próprio STF, nas razões do voto que consagrou o Tema 796 (Ministro Alexandre de Moraes), como se vê:
“(…) Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – ” nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa juri´dica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locac¸a~o de bens imo´veis ou arrendamento mercantil” – revela uma imunidade condicionada a` na~o explorac¸a~o, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imo´veis, de locac¸a~o de imo´veis ou de arrendamento mercantil.
Isso fica muito claro quando se observa que a expressa~o “nesses casos” na~o alcanc¸a o “outro caso” referido na primeira orac¸a~o do inciso I, do § 2o, do art. 156 da CF. (…)
(…) Ou seja, a excec¸a~o prevista na parte final do inciso I, do § 2o, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso. (…)
Reitere-se, as hipo´teses excepcionais ali inscritas na~o aludem a` imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta e´ incondicionada, desde que, por o´bvio, refira-se a` confere^ncia de bens para integralizar capital subscrito.”
Diante disso, após o Tema 796, passou-se a questionar, com maior suporte, a imunidade incondicionada do ITBI na integralização de bens ao patrimônio de uma pessoa jurídica, levando-nos a mais importante decisão sobre o assunto desde o Tema fixado pelo STF, qual seja: o acórdão proferido pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (Processo n. 0705115-03.2021.8.07.0018).
O Conselho, composto na ocasião por 17 desembargadores, analisando o Decreto Distrital 25.576/2006, decidiu, em sede de Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade, por unanimidade, que a disposição legal do Inciso I, §2º, do artigo 156, da Constituição Federal abarcaria duas hipóteses:
– (a) Uma de imunidade incondicionada (integralização de bem imóvel ao capital social de pessoa jurídica); e
– (b) outra de imunidade condicionada à preponderância da atividade imobiliária (no caso de incorporação, fusão, cisão e extinção da pessoa jurídica), de modo que o Decreto em debate no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade não poderia impor a incidência do ITBI nos casos de integralização de bem imóvel à pessoa jurídica, independente de receita imobiliária preponderante, segundo se denota:
INCIDENTE DE ARGUIC¸A~O DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 3o, §1o, LEI DISTRITAL No 3.830/2006 E ART. 2o, §1o, DECRETO DISTRITAL No 27.576/2006. IMUNIDADE TRIBUTA´RIA. ART. 156, §2o, I, CONSTITUIC¸A~O DA REPU´BLICA. INTEGRALIZAC¸A~O DE CAPITAL SOCIAL. IMUNIDADE INCONDICIONADA. ARGUIC¸A~O PARCIALMENTE ACOLHIDA.
1. (…)
2. O art. 156, §2o, I, da Constituic¸ão da Repu´blica estabelece duas hipóteses de imunidade relativamente ao ITBI, a primeira delas incondicionada e a segunda, condicionada.
São elas:
– a) não incide ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realizac¸ão de capital;
– b) não incide ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporac¸ão, cisão ou extinc¸ão de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locac¸ão de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
3. (…)
4. No julgamento do Tema 796 da Repercussão Geral, RE no 796.376/SC, o Supremo Tribunal Federal consignou, nas razo~es de decidir do voto condutor do acórdão, que “a excec¸ão prevista na parte final do inciso I, do § 2o, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso“. Assim, sedimentou a interpretac¸ão de que a imunidade do ITBI relativa a` integralizac¸ão de capital social e´ incondicionada e a condic¸ão de não exercer atividade preponderantemente para se beneficiar dessa imunidade alcanc¸a apenas as hipóteses de transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporac¸ão, cisão ou extinc¸ão de pessoa jurídica.
5. (…)
Logo, observa-se o firmamento de um novo entendimento pró contribuintes que reforça os termos da Constituição, salientando o planejamento patrimonial por meio do instrumento de Holding, evitando, então, a cobrança de determinado imposto de forma irracional por parte da municipalidade.
Além disso, determinado julgado ganha grande relevância jurídica ao passo que se mostra como o principal caso a poder levar o tema aqui enfrentado, de forma direta, ao crivo do Supremo Tribunal Federal, diferentemente do que ocorreu no Tema 796.
(*) Victor Constante é Membro do escritório Di Rezende Advocacia e Consultoria
https://www.migalhas.com.br/depeso/387535/holding-e-itbi-a-consolidacao-de-um-novo-entendimento