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A Lei Complementar nº 199/23 consegue simplificar as obrigações acessórias?

Em 1° de agosto foi publicada a Lei Complementar nº 199, que institui o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias, objetivando diminuir os custos de observância e incentivar a conformidade por parte dos contribuintes, no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.

Essa norma detalha quais são os principais elementos que permitirão atingir essas finalidades, a saber: 

– emissão unificada de documentos fiscais eletrônicos;

– utilização dos dados de documentos fiscais para a apuração de tributos e para o fornecimento de declarações pré-preenchidas e respectivas guias de recolhimento de tributos pelas administrações tributárias;

– facilitação dos meios de pagamento de tributos e contribuições, por meio da unificação dos documentos de arrecadação;

– unificação de cadastros fiscais e seu compartilhamento em conformidade com a competência legal.

Além disso, o estatuto em apreço também busca padronizar as legislações e os respectivos sistemas direcionados ao cumprimento de obrigações acessórias, visto que isso possibilitará a redução de custos para a administração tributária e para os contribuintes.

A simplificação pretendida pela Lei Complementar nº 199, entretanto, não se aplica a todos os tributos, estando dela excluídos o Imposto sobre a Renda (IR) e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).

Além disso, cria um grupo, o Comitê Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias (CNSOA), para gerir as ações de simplificação das obrigações acessórias, cujos integrantes são formados por representantes da Secretaria da Receita Federal (RFB) e no caso dos estados, Distrito Federal e municípios por aqueles indicados por Secretários de Fazenda/Finanças e órgãos vinculados ao Poder Executivo, sendo que o CNSOA será presidido e coordenado por representante da União indicado pelo Ministro da Fazenda.

Por fim, suas deliberações serão precedidas de consulta pública, em conformidade com a lei, exceto aquelas que digam respeito a sua própria organização.

O presidente da República vetou diversos dispositivos do Projeto de Lei Complementar (PLC) sendo, dentre outros, os mais relevantes os incisos II, III e VII do caput do artigo 1º, que instituíam a Nota Fiscal Brasil Eletrônica (NFB-e), a Declaração Fiscal Digital Brasil (DFDB), com informações de todos os tributos cobrados pelos entes tributantes envolvidos, unificando a base de dados das administrações tributárias, e a instituição do Registro Cadastral Unificado (RCU). 

O fundamento do veto, no caso da NFB-e e da DFDB, é que tais proposições poderiam aumentar custos no cumprimento das obrigações tributárias, para o Fisco e os contribuintes, além de hoje existirem documentos fiscais eletrônicos que suprem tal necessidade e as finalidades pretendidas com o RCU já estariam cumpridas com o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).

Também foi vetado o inciso IV do caput do art. 3º que previa a indicação de representantes da sociedade civil para o CNSOA, sob alegação de que tal determinação é inconstitucional tendo em vista que os entes tributantes têm competência exclusiva para instituir seus tributos, além de mostrar-se inconveniente a presença de membros alheios às administrações tributárias e aos deveres de sigilo fiscal e de preservação de informações.

Por fim, foi vetado o inciso II do § 1º do artigo 3º do PLC que permitia ao CNSOA disciplinar obrigações tributárias acessórias.

As obrigações acessórias, em matéria de tributos, sempre foram consideradas como um dos maiores problemas em nosso país, por seu número, pelas dificuldades para cumpri-las, pelas multas, extremamente gravosas, por inobservância das disposições legais pertinentes.

No ano de 2007, o Decreto nº 6.022 instituiu o Sistema Público de Escrituração Digital — Sped com o objetivo de unificar as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração contábil e fiscal dos empresários e das pessoas jurídicas, mediante fluxo único, computadorizado, de informações.

Embora sejam usuários do Sped a Receita e as administrações tributárias dos demais entes tributantes, até hoje poucos municípios se integraram a esse modelo de uniformização de informações, não tendo firmado convênio com a Receita e demais órgãos/entidades da administração pública federal envolvidos no tema.

O Decreto nº 6.022 dispõe que o Sped será administrado pela Receita com a participação de representantes indicados pelos demais usuários.

O Sped divide-se em módulos, sendo um deles a Central de Balanços, além dos livros de escrituração, contábil e fiscal, inclusive os documentos fiscais comuns à União e aos estados.

À época dou grande parte dos problemas voltados à escrituração de operações e emissão de documentos para fins fiscais, mas embora tenha facilitado muitas coisas, nem tudo se resolveu, persistindo problemas com obrigações acessórias, como se verá.

Todas as vezes em que se fazem pesquisas acerca de uma reforma tributária, as vozes são unânimes no sentido da complexidade, excesso e correspondente custo das obrigações acessórias, ou seja, aquelas decorrentes da obrigação principal de pagar tributo, contudo tendo por objeto “as prestações, positivas ou negativas, previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”.

Assim, a adoção de documentos fiscais, devidamente preenchidos, é obrigação acessória que, se inobservada, leva o contribuinte a ser autuado com exigência de multa.

Não faltam trabalhos de fôlego que mapearam obrigações acessórias, o tempo para cumpri-las e o correspondente custo, todos oriundos de entidades respeitáveis no mundo e no Brasil.

A própria OCDE tem alertado sobre esse tema, no Brasil, de tal sorte que ele reclama uma solução urgente.

Nas propostas que os especialistas fazem, de reformulação do sistema tributário sempre há uma recomendação de que as obrigações acessórias sejam revistas sob o enfoque de sua racionalização.

O tema é tão relevante que, em algum momento, no passado, tratamos o custo da burocracia vinculada às obrigações acessórias como “tributação oculta” uma vez que seu custo é dado por alguns organismos como correspondente a uma parcela razoável do Produto Interno Bruto, que pode ser mensurada, por força de sua amplitude.

O amor à burocracia, no país, desde sua descoberta, excede a cautela razoável. Sob a palavra burocracia abriga-se um sistema que se define pela falta de eficiência, pela lentidão na resolução de questões ou pela falta de preocupação com os cidadãos.

Com isso o Poder Judiciário acaba sobrecarregado por questões que seriam de pouca relevância e fáceis de serem resolvidas, mediante alterações em normas infraconstitucionais e até infralegais.

São muitos os projetos que se voltaram a obrigações acessórias, inclusive junto ao Banco Mundial, à OCDE e a entidades acreditadas nesse tema como o são a Receita Federal, a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e a Câmara Americana.

Os especialistas, sempre apontaram falhas e dificuldades e propuseram soluções, mas tudo em vão, pois até hoje nada se modificou.

Em 2012 a ACSP e a PWC conduziram trabalho com resultados divulgados e enviados ao Poder Executivo, no qual se buscou, à época, já no âmbito do Sped, identificar informações prestadas em duplicidade pelo contribuinte, dentre as diversas exigidas pelas autoridades fiscais, as então chamadas redundâncias.

De forma simplificada, no preenchimento de informações tributárias do Sped, pedia-se reiteradas vezes a mesma informação , assim multiplicando o trabalho a ser feito, bem como possibilitando a ocorrência de erros.

Esse trabalho gerou uma série de sugestões, a saber: revisão das obrigações acessórias para determinar sua real necessidade; revisão do conteúdo das informações nelas contidas para determinar a sua necessidade; revisão das normas que regulavam multas nas hipóteses de erro relativamente a informações em duplicidade; inclusão de representantes dos contribuintes para auxiliar nas revisões propostas.

As principais causas para as sucessivas autuações no modelo Sped foram, à época, creditadas à redução das fiscalizações presenciais em favor das digitais, ausência de sistematização e racionalidade na criação de obrigações acessórias, deficiências operacionais e de processo de tecnologia da informação e falta de integração entre os sistemas de informação

Desse trabalho, embora levado ao poder público, nunca se teve qualquer retorno.

A própria Central de Balanços, que integra o Sped e tem o objetivo de reunir as demonstrações e documentos contábeis das entidades participantes em um único local [4], não parece ser muito acessada pelos auditores da Receita, pois todo processo de fiscalização começa com o pedido, ao contribuinte, do balanço, o que é deveras surpreendente, pois com isso pode-se concluir que o instrumento Sped, Central de Balanços, não estaria sendo otimizado pelas próprias autoridades fiscais que o introduziram!!!

Além dos trabalhos citados, há muitos outros coordenados no âmbito de entidades de classe, universidades, grupos organizados que já podem fornecer ao poder público uma massa substancial de informações para se operar, de imediato, a simplificação, antes mesmo que o CNSOA se ponha em marcha. Sendo as obrigações acessórias objeto de normas infralegais é bastante simples a sua revisão.

À vista desses fatos, afinal, o que a lei complementar trouxe de novo em matéria de simplificação de obrigações acessórias?

Rigorosamente, a nosso ver, nada, exceto uma lista de boas intenções a serem consubstanciadas pelo Consoa, nada que já não devesse ter sido feito, desde que haja a intenção de, efetivamente, assim fazê-lo.

Examinando as disposições de seu artigo 1°, I, que objetiva a emissão unificada de documentos eletrônicos fiscais, é de se destacar que o Brasil já faz isso há tempos, antes da era eletrônica, para fins de ICMS, antigo ICM, e IPI, que desde a década de 1970 obedecem os ditames do Convênio S/N firmado em 12/70 entre o Ministro da Fazenda e os Secretários de Fazenda dos estados e do Distrito Federal, o qual em seu artigo 1º dispõe que o Sistema Nacional Integrado de Informações Econômico-Fiscais (Sinief) tem como objetivos: a obtenção e permuta de informações de natureza econômica e fiscal entre os signatários e a simplificação do cumprimento das obrigações por parte dos contribuintes.

A introdução do Sped tornou todos os documentos fiscais dos entes tributantes, eletrônicos e uniformizados e, embora facilite a sua emissão para o contribuinte, também permite ao poder público “fiscalizar” à distância emitindo notificações fruto apenas do cruzamento automático de dados.

O incentivo à conformidade tributária, assim entendidas as ações que objetivam melhorar a relação entre a administração tributária e os contribuintes, para incentivar o cumprimento das obrigações tributárias e reduzir o contencioso, também apontado como um dos objetivos da LC nº 199, não é novidade, pois há diversos programas dessa natureza em andamento desde 2018, acompanhando as tendências mundiais.

Os vetos trazidos pelo Poder Executivo resultam eliminar a alma do que se pretende, reduzir, a complexidade, inclusive sob o argumento de que a participação de entidades privadas poderia resultar em quebra de sigilo.

Não há matéria que deva observar sigilo quando se trata de normas sobre obrigações tributárias, elas são de interesse público, e não se confundem com a obrigação tributária de um dado contribuinte.

As disposições finais contemplam previsão de que os entes tributantes tenham acesso, entre si, aos documentos fiscais emitidos, com o objetivo de automatizar a escrituração fiscal de todos os tributos abrangidos pela lei, reduzindo a intervenção do contribuinte.

Ora, indaga-se, e o Sped?

Por fim, o inciso IV, do artigo 1°, chama a atenção ao fazer referência a “declarações pré-preenchidas e respectivas guias de recolhimento de tributos pelas administrações tributárias”, que deve ser visto apenas como uma opção do contribuinte. 

Nada mais se pode acrescentar, exceto que aqui pode residir uma nítida tentativa de vetar ao contribuinte o direito de aplicar sua interpretação em matéria tributária.

À luz desses fatos, qual seria o propósito do Congresso Nacional ao aprovar a Lei Complementar nº 199, ainda antes de aprovada a reforma tributária?

Certamente para responder aos contribuintes que há anos buscam por soluções que reduzam as dificuldades encontradas com o número excessivo de obrigações acessórias, o custo de mantê-las e as gravosas multas impostas por equívocos e erros cometidos.

Se esse foi o intuito, a nosso sentir, esvaziou-se, pois se excluíram de seu âmbito as obrigações acessórias voltadas ao IR, talvez as mais complexas de todas.

É certo, ao fim, que nada mais será feito do que acompanhar as disposições do velho Ajuste Sinief aplicável ao ICMS e ao IPI. O Sped não estará sendo acompanhado, em sua inteireza, visto que ele trata também de tributos aqui não abarcados.

De toda sorte a construção que se desenha para reduzir obrigações acessórias mostra apenas ações em uma direção, do Fisco para os contribuintes, parecendo não haver qualquer interesse em atender às necessidades destes e tampouco, ouvi-los, em tema que a eles muito interessa pelas dificuldades, pelo custo e pelo alto risco envolvido.

Por essa razão, com certeza, foram vetadas as participações de entidades da sociedade civil.

Respondendo à pergunta que serve de título a este pequeno comentário, a Lei Complementar nº 199 nada acrescentou ao tema das obrigações acessórias que há tempos tanto afeta os contribuintes.

Melhor que se implementasse algumas das medidas há tempos sugeridas por entidades, especialistas e contribuintes.

Por ora, como dizia a fábula que Horácio, poeta romano, atribui a Fedro, a montanha pariu um rato, dado que nada se acrescenta, nada de novo foi trazido e nada, até agora, mudou.

Que o Consoa venha a dar atenção a tudo que já se fez sobre obrigações acessórias e resgate a credibilidade dessa norma.


Por Elidie Palma Bifano é graduada pela Faculdade de Direito da USP, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no Curso de Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo (FGV) e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet) e advogada em São Paulo.

Fonte: conjur.com.br

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