Por: Maria Aurélia dos Santos Rocha (*)
Trata-se de operação plenamente admitida por nossos Tribunais pátrios, implicando em planejamento e verdadeira economia na tributação de ITCMD, em especial, evitando-se futura incidência desse imposto quando da sucessão do cônjuge supérstite.
Quando ocorre o falecimento de um ente querido, abre-se sua sucessão e consequentemente ocorre a transmissão automática dos bens e direitos a seus sucessores, conforme Princípio de Saisine.
O inventário, que é o processo no qual se realiza o arrolamento e partilha dos bens, direitos e dívidas do falecido, deve ser instaurado dentro do prazo de 60 (sessenta) dias a contar da abertura da sucessão, ou seja, do óbito, conforme preconiza o art. 611 do Novo CPC.
Ele tanto pode ser realizado na via judicial como na extrajudicial, ou seja, em Tabelionato de Notas.
Nesta última, a lei 11.441/07 exige que as partes sejam capazes (incluído os menores emancipados), haja assessoramento de advogado e não exista testamento (ou se este houver, tenha sido efetivada sua abertura em processo judicial próprio com autorização para sua realização perante o Tabelião).
É nesse momento, que os sucessores elaboram o plano de partilha dos bens com a divisão do monte-mor em quinhões, atribuindo-lhes frações ideais ou propriamente os bens individualmente considerados.
E, tornou-se muito comum, a vontade de cônjuges supérstites com idade avançada, de apenas lhes reservar o usufruto dos imóveis em partilha, passando a nua propriedade a seus futuros sucessores.
Essa reserva de usufruto realizada no próprio ato do inventário foi, por diversas vezes, impugnada pela Fazenda Estadual de SP, sob a alegação de se tratar de uma cessão travestida de doação e, sobre a qual, deveria também incidir o ITCMD (Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos), regulamentado pela lei Estadual 10.705/00 no Estado de São Paulo.
Para o Fisco Estadual, num único ato haveriam duas operações distintas, tributáveis ambas com ITCMD:
– a primeira, na sucessão, ou seja, sobre a parcela de bens e direitos herdados (com exclusão da meação, que já caberia ao cônjuge supérstite);
– a segunda, na doação da nua propriedade aos herdeiros dos bens que compõem a meação como do quinhão a que o cônjuge supérstite houvesse recebido (em conformidade com o regime de bens que se encontrava casado com o de cujus), com cessão do usufruto dos bens herdados pelos sucessores ao cônjuge supérstite.
Para exemplificar esse entendimento fazendário, imaginemos um patrimônio adquirido sob o regime de comunhão universal de bens totalizando R$600.000,00, sendo R$ 300.000,00 de meação e os outros de R$ 300.000,00, de herança propriamente dita.
O primeiro fato gerador do ITCMD é a transmissão do monte mor de R$300.000,00 aos sucessores, com pagamento de imposto de R$ 12.000,00 (4% sobre R$300.000,00).
Na sequência, reservando-se o usufruto de todos os bens ao cônjuge supérstite, o Fisco entende ser uma doação da nua propriedade da meação (equivalente a 2/3 de R$ 300.000,00, conforme art. 9º, §2º, item 4, da lei Estadual 10.705/00) pelo cônjuge supérstite aos herdeiros, com pagamento de R$ 8.000,00, bem como cessão do usufruto dos bens herdados (equivalente a 1/3 de R$ 300.000,00, conforme art. 9º, §2º, item 3, da lei Estadual 10.705/00) pelos sucessores ao cônjuge supérstite, com pagamento de R$ 4.000,00. Portanto, a Fazenda Estadual entende haver ITCMD total de R$ 24.000,00.
No entanto, a operação pretendida de reserva de usufruto a meeira muito difere do entendimento fazendário, sobre a qual deverá incidir tão somente a sucessão dos R$ 300.000,00 da herança, com pagamento de R$ 12.000,00, mais a diferença de partilha equivalente a 1/3 de R$ 300.000,00, com pagamento de R$ 4.000,00, totalizando um imposto de ITCMD de R$ 16.000,00.
Ora, não se trata de renúncia de meação, visto que os bens já compõem o patrimônio do cônjuge supérstite.
Também não há que se falar em renúncia abdicativa da herança (também chamada de renúncia pura e simples, na qual há isenção do ITCMD – art. artigo 5º, inciso I, da lei Estadual 10.705/00).
Trata-se de uma especialização do que irá compor a meação do cônjuge supérstite e do que irá constituir a herança.
Com efeito, atribui-se o usufruto total dos bens para a meação, enquanto a nua propriedade total dos bens comporá a herança.
Isso porque a meação nada mais é do que a mancomunhão dos bens, que não se confunde com o condomínio civil onde é possível atribuir frações ideais aos envolvidos;
– Assim é um direito inespecífico que, advindo a morte ou separação do cônjuge, pode haver sua especificação em bens determinados (por exemplo, uma determinada aplicação financeira de valor equivalente ao dos imóveis, com atribuição destes aos herdeiros filhos) ou nos direitos de usufruto entre partes maiores e capazes.
Dessa forma, já se reconheceu que não há nenhuma irregularidade na especialização ao cônjuge supérstite da totalidade do usufruto de todos os imóveis, com atribuição aos herdeiros da nua-propriedade dos mesmos imóveis, bastando o consenso entre eles.
Para essa especificação, é de praxe a atribuição de 1/3 do valor do bem ao usufruto e de 2/3 para a nua propriedade, como vem disposto na lei Estadual 10.705/00 para fins de recolhimento de ITCMD em negócios imobiliários, cujo fundamento, diga-se de passagem – é aleatório e não possui qualquer racionalidade.
Com efeito, a bem da verdade, “esta proporção não guarda consonância econômica com o proveito que cada um destes institutos proporciona em relação à propriedade plena” (TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2134724-09.2020.8.26.0000, 7ª Câmara de Direito Privado, Rel. Designado Luís Mário Galbetti, j. em 2/3/21).
Tratando-se de direitos reais que representam uma parcela, ou desdobramento, da totalidade de poderes insertos na titularidade plena, o juízo de valor representativo destes poderes somente pode ser aferido, rigorosamente, pelo interesse das partes.
Cobrar-se-á nos autos de inventário dos herdeiros apenas o valor correspondente ao imposto causa mortis sobre a metade dos bens (em tese transmitida aos herdeiros) que o finado possuía em conjunto com a viúva e cuja especialização acabou atribuindo, agora, separadamente, a nua-propriedade e usufruto, respectivamente, aos herdeiros e à viúva.
E são diversos os precedentes jurisprudenciais autorizando, na hipótese de partilha amigável, a instituição do usufruto vitalício em favor do viúvo e a atribuição da nua-propriedade em benefício dos herdeiros, na medida em que o direito real de usufruto vitalício reflete expressivo valor econômico
(TJ/SP, Agravo de Instrumento 2072203-72.2013.8.26.0000, 6ª Câmara de Direito Privado, Rel. Paulo Alcides, j. em 18/2/14; TJSP, Agravo de Instrumento 2205525-57.2014.8.26.0000, 4ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Milton Paulo De Carvalho Filho, j. em 29/1/15; RJTJESP 65/236; RJTJESP 127/185).
Destarte, trata-se de operação plenamente admitida por nossos Tribunais pátrios, implicando em planejamento e verdadeira economia na tributação de ITCMD, em especial, evitando-se futura incidência desse imposto quando da sucessão do cônjuge supérstite.
(*) Maria Aurélia dos Santos Rocha é Advogada (FAAP) e engenheira civil (Mackenzie). Especialista em direito registral e notarial e direito do consumidor (Escola Paulista da Magistratura). Sócia fundadora da Academia Nacional de Direito Notarial e Registros Públicos (AD NOTARE).