Por Gabriela Conca e Davi Finotti Ferreira (*)
Desde o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) nºs 5.659/MG e 1.945/MT pelo STF (Supremo Tribunal Federal), finalizado em fevereiro de 2021, existia grande expectativa do setor privado quanto à interpretação que seria dada pela Receita a esses precedentes para fins de cobrança dos tributos federais incidentes nas operações de licenciamento de software.
Pouco a pouco, fomos vendo uma mudança no entendimento das autoridades fiscais sobre a natureza dessas operações, que, sob o pretexto de se adequar ao posicionamento do STF sobre o tema, incorreram em uma série de inconsistências e acabaram gerando mais insegurança jurídica aos contribuintes.
Analisamos neste artigo as Soluções de Consulta editadas pela Receita Federal após o julgamento das ADIs nºs 5.659/MG e 1.945/MT — que concluíram pela incidência do ISS sobre o licenciamento de uso de software em razão da sua caracterização como serviço para esta finalidade — em especial a Solução de Consulta nº 107, publicada em 13.6.2023, que alterou o entendimento do órgão fazendário quanto à incidência de PIS-Importação e Cofins-Importação sobre as remessas realizadas como contraprestação à importação de licença de uso de software.
Avaliando a evolução do entendimento da Receita Federal sobre o assunto, observamos que em suas primeiras manifestações após o julgamento das ADIs nºs 5.659/MG e 1.945/MT (Soluções de Consulta nºs 43/2021, 99001/2021, 6022/2021, 7250/2021, 4028/2021, 4030/2021 e 7007/2022) sequer houve menção aos referidos julgados.
Consequentemente, a venda (desenvolvimento e edição) de softwares prontos para o uso (standard ou de prateleira) foi classificada como venda de mercadoria, enquanto a venda (desenvolvimento) de softwares por encomenda foi classificada como prestação de serviço. No caso da importação de licença de uso de software, as remessas foram tratadas como royalties para fins de IRRF.
O entendimento mudou com a edição da Solução de Consulta nº 36/2023, que enquadrou como serviço a atividade de licenciamento ou cessão de direito de uso de software, independentemente do seu nível de customização. No caso concreto, foi determinado que empresa enquadrada no lucro presumido que licenciava software (padronizado ou customizado) deveria utilizar o percentual de presunção de 32% para determinação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Essa Solução de Consulta foi seguida pelas Soluções de Consulta nºs 10006/2023, 6003/2023 e 7009/2023 editadas posteriormente.
Em seguida, foi editada a Solução de Consulta nº 75/2023 que, a despeito de ter discorrido extensamente sobre a recente decisão do STF na ADI nº 5.659/MG, não equiparou o licenciamento de software à prestação de serviço propriamente. A Receita Federal determinou que a remuneração pela licença de uso de software configura royalties sujeitos à retenção de IRRF à alíquota de 15% (com exceção de remessas para países com tributação favorecida), tendo em vista o disposto no artigo 22 da Lei nº 4.506/64, que classifica os rendimentos decorrentes da exploração de direitos autorais como royalties.
Mais recentemente, foi editada a Solução de Consulta nº 107/2023, que trouxe um conceito híbrido para fins de cobrança de tributos federais. Para fins de IRRF, a Receita considerou que a remuneração da licença de uso de software qualifica-se como “royalties”, enquanto para fins de PIS-Importação e Cofins-Importação tratou o licenciamento como “serviço”. Ainda, ao tratar da Cide, a Receita afirmou que nos casos de “manutenção pela atualização da versão do próprio software, desde que não origine novo licenciamento, incide a Cide sobre a remuneração a residente ou domiciliado no exterior” por configurar serviço técnico.
Diante desse novo panorama, é preciso tecer algumas considerações quanto ao posicionamento da Receita sobre o tema e dividir algumas preocupações sobre a sequência de incoerências cometidas pelas autoridades fiscais que, certamente, levará à judicialização do tema.
Em um primeiro momento, vale observar que não foi objeto das ADIs nºs 5.659/MG e 1.945/MT a definição de serviços para fins de aplicação da legislação federal. Nessas ações, o STF apenas definiu que, para fins do conflito de competência ISS x ICMS sobre a tributação do consumo, o licenciamento de software (seja customizado ou não e independentemente da forma como entregue ao consumidor) deveria ser tributado pelo ISS pois: 1) pressupõe uma obrigação de fazer passível de tributação pelo imposto municipal e 2) encontra previsão em lei complementar.
Essa disputa nunca foi relevante para efeitos de tributos federais, inclusive, pois o legislador diferenciou “serviços” de “direitos”. Vale lembrar, por exemplo, as regras de preços de transferência que sempre diferenciaram operações com “bens, serviços e direitos” (Lei nº 9.430/96) e antecedem a Lei nº 10.865/2004, que instituiu o PIS-Importação e Cofins-Importação. Não se pode assumir que a Lei nº 10.865/2004 sempre teve a intenção de equiparar o licenciamento de software (exploração de direitos) a serviço. Caso contrário, inclusive, a própria diferenciação trazida na legislação federal seria inócua.
Ao que tudo indica, a Solução de Consulta nº 107/2023 se apropriou convenientemente da decisão proferida nas ADIs nºs 5.659/MG e 1.945/MT para tributar atividades não previstas originalmente na competência do PIS-Importação e da Cofins-Importação e aumentar a base de arrecadação do governo.
Um segundo ponto que merece destaque decorre do tratamento diferenciado de “royalties” e “lucro da empresa estrangeira” para fins de aplicação dos tratados internacionais para evitar a bitributação. Normalmente, ao amparo desses tratados, o lucro auferido pela empresa estrangeira em razão da sua prestação de serviços deve ser tributado apenas na sua jurisdição, ao passo que royalties podem ser tributados na jurisdição do remetente.
Portanto, o enquadramento da atividade de licenciamento de software como serviço típico deveria atrair o tratamento de “lucro da empresa estrangeira” às remessas feitas por brasileiros, o que não ocorre necessariamente na prática. São inúmeras as tentativas das autoridades federais de enquadrar a remuneração do licenciamento de software como royalties para fins de retenção do IRRF mesmo quando o tratado não atribui essa natureza a tais remessas.
Um terceiro ponto relevante para esse debate, que possivelmente será enfrentado no Recurso Extraordinário nº 928.943/SP (tema de repercussão geral 914), diz respeito à cobrança da Cide sobre a atividade de licenciamento de software (sem transferência de tecnologia). A depender da circunstância, as remessas feitas para remunerar essa atividade podem ser tratadas pelas autoridades fiscais como royalties ou como remuneração por serviço técnico.
A discussão é ainda mais pertinente quando se discute a incidência da Cide em momento anterior à edição da Lei nº 11.452/2007, que expressamente afastou a cobrança dessa contribuição sobre as remessas para remuneração de licença de uso ou de direitos de comercialização ou distribuição de software sem transferência de tecnologia. Isso porque, antes da Lei nº 11.452/2007, as autoridades fiscais alegavam que seria possível cobrar Cide sobre tais remessas em razão do seu enquadramento como royalties. Vemos aqui, novamente, mais um potencial ponto de contradição no entendimento das autoridades fiscais; ao passo que para efeitos de PIS-Importação e Cofins-Importação o licenciamento de software é tratado como serviço, para efeitos de Cide, sua remuneração é tratada como royalties.
Em contrapartida, e já passando para o quarto ponto que merece destaque, está o tratamento do licenciamento de uso de software na modalidade “as-a-service” (SaaS) que, no entendimento da Receita Federal, deve ser tratado como serviço técnico para efeitos de IRRF, Cide, PIS-Importação e Cofins-Importação. Como discutido nas próprias ADIs nºs 5.659/MG e 1.945/MT, o SaaS se diferencia das demais modalidades essencialmente pela sua forma de acesso e armazenagem (o software é disponibilizado na nuvem pelo fornecedor e não fica armazenado pelo cliente), mas não perde a essência de licenciamento de uso software.
Para a Receita Federal, contudo, o licenciamento de uso de software na modalidade “as-a-service” deveria receber tratamento de serviço técnico, enquanto o licenciamento via download, por exemplo, deveria receber o tratamento de royalties. Essa distinção não encontra qualquer respaldo técnico ou normativo. Novamente estamos diante de um exercício de conveniência que altera toda a tributação federal dessas operações.
Um quinto ponto a discutir diz respeito à aplicação das regras de preços de transferência e dedutibilidade de despesas da base de cálculo do IRPJ e da CSLL. Como é sabido, as regras de preços de transferência vigentes (até que sejam adotadas as novas regras previstas na Lei nº 14.596/2023) não se aplicam a royalties, que são subordinados a condições de dedutibilidade específicas.
Portanto, a natureza atribuída à remessa de remuneração pela importação de licença de uso de software influencia também a adoção das regras de preços de transferência e limites de dedutibilidade. A despeito da relevância do tema, até o momento, esse ponto não foi devidamente enfrentado pelas autoridades fiscais.
As constatações acima mostram que o cenário atual é de grande insegurança jurídica. O licenciamento de uso de software é ora tratado pela Receita como serviço puro, ora como serviço técnico (se na modalidade SaaS, por exemplo), ora recebe o tratamento de royalties. É preciso ter congruência na interpretação dos conceitos para fins de aplicação da legislação federal, especialmente dado o significativo impacto no planejamento dos negócios e investimentos no país.
Gabriela Conca é sócia do escritório FLH Advogados.
Davi Finotti Ferreira é advogado em São Paulo e pós-graduando em Direito Tributário pelo Insper.
Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2023, 13h18
https://www.conjur.com.br/2023-jun-28/concae-ferreira-capitulo-novela-tributacao-software